Discutindo A Árvore da Vida

Não me sentindo ainda apto a escrever uma resenha sobre o filme, resolvi registrar aqui coisas importantes que defendi e/ou aprendi em inúmeras discussões. Spoilers (claro)!

1. Todo o filme se passa pela visão do JACK.

Muitos parecem não ter percebido isso e falham ao criticar os personagens do pai e da mãe (“estereótipos”, “maniqueístas”) ou as tomadas simplistas de cidade Texana. Todo o filme, e eu incluo aí o big bang e os tempos pré-humanidade, se passa através da visão do irmão mais velho da família. Isso explica as tomadas rente ao chão, como se vistas por uma criança, e a forma simplista como muitos eventos são retratados. Mas isso levanta questões importantes: os outros irmãos de Jack parecem gostar muito do pai, por que então Jack tem tantos problemas com ele? Será que o pai é tão rígido assim? E a mãe dele, será que é tão perfeita? Não, claro que não. O que o filme mostra não é a versão real dos personagens, mas a versão conforme foi guardada por Jack.

Para a memória de um jovem garoto, cheio de remorsos e conturbadas lembranças, isso é o que faz sentido. O pai, rígido, militar, disciplinador, é o culpado pela sua própria personalidade. Já sua mãe é graciosa, linda… Representava a arte, o amor. Alguma “injustiça” fez com que ele seguisse mais os caminhos do pai, se afastando muitas vezes da mãe (que é melhor representada pelo irmão do meio). E talvez esse seja o maior conflito do personagem: descobrir que é o pai, mesmo querendo tanto ser mais parecido com a mãe.

2. Todo o filme representa o conflito Natureza x Graça

Quase como uma hipótese científica ansiosa para ser testada, a luta entre Natureza e Graça é profundamente apresentada no filme. Um lado, mais humano (natural), é egoísta, pragmático, objetivo. O outro, mais divino (graça), representa o amor, o sacrifício, a harmonia. Todos devem seguir um ou outro, mas, como o filme bem coloca, temos um pouco de cada. Defendemos um lado ou outro dependendo da circunstância, mas ambos estão lá. E todo o filme trata essa eterna luta: por que as nuvens gasosas, bilhões de anos atrás, se atraíram e formaram estrelas, galáxias, planetas? Por que a singularidade se expandiu da forma mais espantosa imaginável, e para quê? Como surgiu a vida?

Alguns explicariam isso facilmente pela natureza. Gravidade, eletromagnetismo, super novas espalhando átomos por todo o universo… Mas alguns não se convencem por tais explicações. Deve haver um motivo maior, uma conexão, um sentido.

 

A cena que melhor explica esse conflito foi mal interpretada por muitos. Para mim é uma das melhoras cenas do filme: um dinossauro vaga sozinho por uma floresta (cuja solidão e hostilidade destoa totalmente do mundo “jurássico” já retratado no cinema), visivelmente fraco. Em seguida o animal aparece caído ao chão, perto de um rio. Um velociraptor se aproxima, chega a brincar com o pequeno animal, mas desiste da caça e vai embora. O que o fez desistir? A graça, que aparece desde os primórdios da vida, regendo toda essa força? Alguma forma de pena, piedade? Talvez. Mas é igualmente plausível aceitar que, estando o animal doente, não era mais adequado para a alimentação, sendo melhor seguir um rastro fresco de presas saudáveis que acabaram de passar.

A natureza e a graça entram então em conflito, milhões de anos atrás.

 

3. O final não é necessariamente o paraíso (e o egocentrismo de Jack)

Respeitando-se a hipótese apresentada acima, o filme toma perspectivas bem interessantes. O final não precisa ser o paraíso. De fato, após defender tão magnificamente o conflito Natureza x Graça, seria estranho se Terrence Malick tomasse partido. Uma perspectiva mais interessante para o final é que tudo aquilo se passa na cabeça do próprio Jack (como todo o filme, vide item 1). Ele não está se encontrando com aqueles familiares e amigos em uma pós-vida, mas em sua própria mente. Está se curando de todos os problemas, remorsos, erros. Está aceitando todos como são. É sua forma de fazer paz não com os outros, mas consigo mesmo.

Sim, o filme todo traz profundas referências a um tratamento psicológico (vi uma teoria interessante de que toda história é baseada no complexo de Édipo: em um primeiro nível, Édipo aplicado ao pai biológico; em um segundo nível, Édipo aplicado ao Pai maior). E se não parece provável que aquele cenário seja apenas uma reflexão, vamos lembrar que temos cerca de uma hora de big bang, formação de galáxias e dinossauros! Então sim, uma mente que imagina tais coisas, e conecta-as diretamente à sua vida, à sua experiência, pode sim imaginar o final que nós vemos.

Isso nos leva a um conceito importante, complementar ao discutido no item 1: o egocentrismo de Jack. Não são apenas os pais que são representados através da visão egocêntrica do personagem. O big bang, a criação da vida, os humanos que vem e vão, tudo gira em torno dele mesmo. Não, não é egocentrismo demasiado: é no mesmo nível que todos nós compartilhamos. Não conseguimos sentir pelos outros, pensar pelos outros, passar pelas experiências dos outros.

Como sempre me disse meu irmão, nem mesmo o altruísta faz nada para os outros, faz para ele mesmo: ajuda os outros porque, ao fazê-lo, sente-se bem.

Então temos a constante sensação de que o mundo gira em torno de nós, de que as pessoas existem apenas para interagir conosco (nos ensinando ou testando), que todo o universo existe apenas para que nós possamos viver. É assim que Jack se sente. E é por isso que o filme conta a história do mundo, do princípio ao fim: a história toda do mundo é, para Jack, a sua própria história.

É com esse toque de genialidade que o diretor nos apresenta o filme. E após ser contagiado pelo mundo que ele retrata com tanta beleza e profundidade, é difícil esquecê-lo.

TRIVIA:

  • Para quem não achou o filme suficientemente triste, vale ler a curta biografia do autor/diretor (que é altamente recluso). Nela vi que o filme é fortemente autobiográfico (alguns dizem que toda obra o é): Malick viveu no Texas, teve um relacionamento com os pais bem similar ao retratado no filme, tinha dois irmãos, perdeu um. Se o filme não explica como o menino morre (talvez a cena tenha sida cortada, talvez o diretor não quisesse explicar), a biografia nos dá boas dicas. Não, ele não morre na guerra (Vietnã?), como de início podemos ser levados a pensar. Eu suspeitei disso de cara, pois imagino que toda morte militar necessita de cerimônia maior do que um simples telegrama. Na vida real, a explicação é bem mais trágica: o irmão mais novo de Malick se suicidou na Espanha em 1968. Ao que parece, o irmão chegou a pedir que Malick fosse visitá-lo, era um garoto problemático. Ele não pôde ir por questões diversas e o pai acabou indo, tarde demais. Trouxe de avião o corpo do caçula.
  • O primeiro corte “oficial” do filme tinha em torno de 6 horas. Foi então certamente difícil chegar às 2h e 20 minutos apresentadas no cinema. Nessa, quem mais saiu perdendo foi Sean Penn, que criticou abertamente a sua participação, defendendo que sua interpretação ficou desnecessária para o filme.
Comments
26 Responses to “Discutindo A Árvore da Vida”
  1. Mdrque diz:

    leia
    “quando coisas ruins acontecem a pessoas boas”. Esse é o real entendimento do filme. E não conclusoes idiotas sem fundamento, apenas no “achismo”.

    • bodao diz:

      Obrigado pela humilde, bem fundamentada opinião.

      Até a próxima.

    • Depret diz:

      Há algo de proximidade entre as perspectivas do livro citado pelo idiota do Mdrque e o filme “resenhado” pelo “capricéfalo”. Ambos são mais do mesmo. O discurso do rabino que escreveu o livro “Quando coisas ruins acontecem a pessoas boas” é uma reformulação de uma teologia-política mediaval que tenta tirar de Deus a responsabilidade de protegar seus seus “filhos”. A ideia é de que toda merda poderia ser pior, por isso bendiga a Deus pela sua. O livro vai da pieguice a aceitação, como um paciente terminal que não pode se revoltar pois a morte e o oponente, “Deus neste caso”, o aguardam no seu campo de batalha – onde será julgado com frieza salomônica. Afinal essa é a discussão que tem fundamento? Passemos ao filme. O diretor foi um pouco adiante ao invés de ater-se à uma grande narrativa (grandes teorias que tentam explicar todas as coisas), no caso do livro a reliogiosa. O diretor ampara-se na perspectiva das ciências naturais, cambiando entre a Física (Big Bang) e a Biologia de Darwin, chegando ao Freudismo (uma leitura míope do complexo de Édipo) que pode desembocar na ideia de uma pulsao primária ou primordial que não necessariamente desemboca no èdipo e na relação sexual, podendo também explicar a fase de maldade que acomete toda criança, vejamos o caso do sapo no figuete exposto no filme. Enfim, qualquer que seja a perspectiva, do rabino escritor ou do diretor perdido, nada de novo sob o sol. A boa e velha discussão que marcou a modernidade, os grandes divisores, o bem, o belo. o bom e seu opositor necessário. Sem contar na falta de destreza com que o diretor tenta retomar o exitencialismo sartreano, para o quem a vida não teria sentido, o sentido da vida quem dá somos nós mesmos.Coisa retomada pelo estruturalismo e que parece que não vai deixar de povoar a mente daqueles que acreditam que um dia existiu a modernidade ou comprou o iluminismo como substituto religioso. Uma última coisa que pode ser indutivamente tirada do filme é a relação entre a memória social e memória individual.
      Enfim, pode ser isso tudo ou não, como diria Caetano, o certo é que seria muito bom que o diretor desse uma folheada num livreto chamado “Jamais fomos modernos”, seria interessante vê-lo ao invés de tentar construir pontes, implodir estas narrativas. Ah! Senti falta de um certo marxismo na discussão, mas alguém falou do trabalho de Jó em algum lugar – acho que foi o rabino do livro – e aí voltamos ao mesmo. E aí voltamos ao bom e velho Lavoisier, nada se cria… Vão catar coquinho todos vocês, cá já faço o mesmo!

      • bodao diz:

        Não concordo, nem discordo. Muito pelo contrário!

        Vou preferir discutir pessoalmente contigo, mas só para não deixar sem resposta, te pergunto: apesar das críticas ao conteúdo do filme, que outro filme você viu recentemente inspira discussões sobre Kushner, Freud, Darwin, Sartre, existencialismo, édipo, e até mesmo… Caetano Veloso?

        Eu pelo menos tenho que remeter aos anos 50 e 60, com Bergman e Kubrick, para chegar a filmes com conteúdo tão complexos e interessantes como esse. Se você não gostou da perspectiva, tudo bem. Mas também, faz muito tempo que você não gosta de um filme! Pelo menos que você admita – nem mesmo as trilogias que vocês insistem em assistir um filme após o outro num domingo de carnaval escapam das críticas!

        Para alguns, reprovar é mais fácil do que reconhecer…

      • Depret, você é m crítico nato, afinal, sabe “inventar” lacunas. Porém, duvido que seria cineasta, algum dia. Seu nível crítico – no sentido de por tudo em crise – é tamanho, que o filme jamais ficaria pronto. Bodão, você é corajoso demais, e paciente ao extremo com os comentadores. Parabéns! Árvore da vida, que só assisti hoje, é poesia e explosão de imagens. A linguagem da poesia é circular e complexa, aberta a toda explicação: das mais ácidas às mais singelas. Tudo o que está dito aqui é válido, embora, paradoxalmente, nada “explique” o filme. O bom debate é o que nos resta de bom. Vamos, então, combater o bom combate, debatendo no nível das ideias. Vamos nos despir das vaidades e dar as mãos! Abraços a todos.

      • bodao diz:

        Prezada Shirlei,

        Concordo 100% e obrigado pelo apoio =). Tento ser paciente mesmo, tem muita gente que escreve sem pensar e nem mesmo vem aqui se defender depois, é só para tirar uma com nossa cara… Então eu nem ligo.

        De fato não falamos aqui sobre nada que explique o filme, eu gosto mais são das discussões que surgem através dele. O bom debate, como você colocou. E depois de tantas reflexões, discussões, conclusões… que explicação a mais nós esperávamos? O que mais precisava ele oferecer?

        É realmente um filme excelente. Vou aproveitar e revê-lo em breve.

        Abraços e obrigado!

  2. Matheus diz:

    A sua resenha foi, dentre as muitas que li, a que melhor conseguiu captar a essência do filme e complementar o que eu já vinha cogitando desde a sala de cinema. Texto claro e preciso. Chegou ao cerne da questão. Gostei mesmo!

    • bodao diz:

      Matheus,

      Obrigado amigo. Realmente é um filme que vale a pena discutir, rever, refletir. Apesar de eu não ter criado ainda coragem de fazer uma crítica completa (indico a sua, excelente), continua sendo um dos filmes que custa a sair da minha memória.

      Abraços!

  3. lucas diz:

    camarada,

    excelente critica sobre o filme. muito claro e fez todo o sentido. depois de ler tua analise pude apreciar mais ainda o trabalho desse diretor.

    um abraco e continue firme

    • bodao diz:

      Lucas,

      Obrigado. Cada dia que passa leio coisas novas sobre o filme que me faz pensar e apreciar mais também a obra. Hoje mesmo vi uma ótima posição de que “os personagens do Brad e da Jessica são personificações de Deus: o pai (caminho da natureza) que requer disciplina, ordem; e a mãe (caminho da graça) que traz o amor, a intimidade, a informalidade. Não é possível ser completo sem os dois, já que em determinado momento o pai se ausenta, e é aí que Jack (nós) flerta com o mal, quebrando vidraças ou machucando os semelhantes”.

      É a opinião do danimarques no Fórum do Cinema em Cena, e confesso que gostei muito, apesar de não ter baseado minhas “hipóteses” nessa afirmação.

      Grande abraço,
      Bode

  4. Daniel Marques diz:

    Não lembro de ter refletido tanto, discutido tanto, interpretado tanto após assistir um filme… 99% analisam Arvore da Vida como um filme comum… daí sua indignação… Árvore da Vida não pode ser tratado como uma experiência cinematográfica comum, mas sim como uma experiência sensorial…

    P.S. Bodão, o que vc acha da cena final na praia ser uma outra visão do funeral do irmão do Jack, uma despedida? E se for isso, pq apenas o Jack está em sua forma adulta?

    • bodao diz:

      Daniel,

      Apoiado 100%. Um filme que tem tanto de filosofia e psicologia como de cinema.

      Quanto ao final, realmente não tinha pensado desta forma. Precisarei rever a cena e identificar melhor os personagens, as expressões, idades, etc, mas é bastante plausível. Continuo pensando mais como sendo algo como um final de um “tratamento”, uma declaração de paz consigo mesmo e com as pessoas importantes da sua vida. Mas isso não está claro no filme nem tem uma forma certa ou errada de se refletir.

      Vendo por esse lado, Jack estar na sua forma adulta é realmente algo interessante de se pensar. Talvez demonstre que ele demorou para aceitar tudo que se passou, para “amadurecer”, e só como adulto conseguiu aceitar completamente o que aconteceu.

      Abraços!

  5. juliana diz:

    Bodão graças as suas interpretaçoes pude melhorar as minhas. Ainda ficarei a pensar sobre ARVORE DA VIDA, talvez assista novamente, ou não, as questões sobre o filme talvez sejam a grande sacada.

  6. Depret diz:

    Bodão larga a mão de assistir filme besta!!!

    • bodao diz:

      Hahaha… Alô Depret, achou o blog foi? Se quiser virar colaborador, tem vaga para caprino ainda. Bode Paraibano!

      Que filme besta que nada, só assisto filme bom!

  7. khemersonmelo diz:

    Ótimo texto para um filme. Uma poesia visual como poucos. Interpretações intimistas e eficientes. Momentos sutis de dramaticidade eficaz que equiparam-se em intensidade à imagens surrealistas e pictóricas cujo simbolismo revela-nos subtramas que vamos captando no decorrer do longa. Você está certo, ali éramos todos Jó, nos perguntando onde estávamos (ou o que assistíamos) enquanto Malick escrevia essa marcante obra-prima!

    Se me permite, deixo aqui o link para o meu blog, que por sinal também tem um texto sobre o filme: http://bauderesenhas.wordpress.com/2011/11/16/a-arvore-da-vida/

  8. Victoria diz:

    Achei o fim do filme muito sem graça nao falou como o garoto morreu , isso atrapalhou muito !!!

    • bodao diz:

      Amiga, de fato não falou, mas não achei tão relevante. É mais um impulso de curiosidade que precisamos controlar =). Mas, caso continue com a curiosidade, pode ver nas trivias aí do meu texto que existe uma hipótese muito forte para a morte dele: suicídio. É triste, mas provável, visto que o filme é tão autobiográfico.

      • Fabiana diz:

        Bodão, parabéns pela crítica psicológica… fazia já um tempo em que não via um filme complexo que me instigasse a procurar análises, e a sua foi uma das melhores que li.
        E, ainda me fica uma dúvida… Qual sua opinião sobre alguns poucos momentos em que aparece uma parte irregular raspada do cabelo do irmão mais novo do Jack?
        Caramba, achei demais essa historia do suicídio, fato que só descobrimos se soubermos a biografia do diretor.
        Fica aqui minha dica de filme bom, complexo e instigante: “Magnólia”
        Abraços!

      • bodao diz:

        Fabiana,

        Obrigado pelos comentários.

        Confesso que não me recordo desta questão do cabelo do irmão dele. Já faz tempo que não vejo o filme (tô precisando de nova sessão), então não estou lembrando. Quando eu assistir novamente vejo se noto algo.

        Quanto ao Magnólia, é um filme maravilhoso mesmo. Ótima dica. Está na ma minha lista de preferidos, assim como a maioria dos filmes do Paul Thomas Anderson (não deixe de conferir o mais novo “O Mestre”).

        Abraços!

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